A História e Caracteristicas dos Zines - Parte 1

20/08/2012 14:09

  

Texto e tradução: Douglas Utescher

O texto que vocês lerão a seguir é a primeira parte da tradução da tese de mestrado de Fred Wright sobre a História e as características dos zines. Particularmente interessante nessa parte do texto é a busca de uma diferenciação entre os termos “fanzine” e “zine”, uma questão que até hoje não é muito clara, especialmente aqui no Brasil.
Essa tese é de 1997 e é óbvio que de lá para cá muita coisa mudou na cena de (fan)zines. Ainda assim, o texto mantém-se atual e relevante em sua essência. Na semana que vem publicaremos a segunda e última parte.
Agradecemos ao Fred por autorizar a tradução e publicação de seu “The History and Characteristics of Zines”. Mais de seu trabalho pode ser encontrado em
www.zinebook.com e www.zinewriters.blogspot.com

 

 Introdução

Um dos mais interessantes fenômenos culturais das últimas duas décadas tem sido a proliferação de zines, periódicos auto-publicados com pequenas tiragens, normalmente xerocados, frequentemente irreverentes, e usualmente direcionados a audiências com interesses muito específicos. Com aproximadamente 20.000 títulos em existência, os zines não podem mais ser considerados um fenômeno estritamente da cultura underground, mas devem ser aceitos como uma parte significativa, se não permanente, da paisagem cultural americana.  

 

Editores de zines produzem trabalhos que abrangem uma enorme variedade de assuntos, de punk rock a boliche, de coleções de dispensadores da bala PEZ às ocorrências diárias na vida pessoal do próprio editor. Apesar da disparidade de assuntos, a grande maioria dos zines apresenta muitas características em comum, que podem ser examinadas como um todo – a ênfase na autonomia e na independência, e a relação conflituosa com a cultura mainstream e os meios de comunicação, por exemplo – fazendo com que o crescimento estrondoso de zines nas últimas duas décadas (que o Factsheet Five, o zine dedicado a resenhar outros zines, chama de “a revolução dos zines”) seja, por si só, um fenômeno digno de ser estudado. Pois os zines não são empreendimentos comerciais: poucos editores de zines esperam obter lucro com seu trabalho, e ainda assim eles investem uma quantidade razoável de dinheiro e tempo em suas publicações.

 

Porque eles continuam a publicar? A resposta rápida é que eles publicam por razões essencialmente pessoais, que variam de indivíduo para indivíduo. O objetivo deste estudo é a exploração detalhada dessas razões, e o alcance de um melhor entendimento do papel dos fanzines na vida de seus editores, na vida de seus leitores e da sociedade americana em geral.

 

Neste artigo, eu traço uma breve história dos zines, além de pesquisar e analisar algumas de suas características comuns. Para auxiliar meu estudo, eu emprego algumas das teorias do psicoanalista francês Jacques Lacan, de quem a atenção à linguagem como uma força determinante na vida dos seres humanos e a divisão da subjetividade humana nos registros de Simbólica, Imaginária e Real são ferramentas úteis para explorar a complexa relação entre seres humanos e linguagem evidenciada nos zines.

  

A palavra

Mantendo a orientação linguística de Lacan em mente, é apropriado começar pela etimologia da palavra “zine”. O mais distante ancestral do termo “zine” na língua inglesa é a palavra “magazine”, que por sua vez deriva da palavra árabe “makhazin” – o plural de “makhzan”, que significa armazém. Em inglês, “magazine” retém o mesmo significado, mas se tornou mais comumente conhecida como o nome para um periódico que contenha diferentes “peças” de escrita, uma definição que pareceria se aplicar à maior parte dos zines também. Mas mesmo que relacionados, magazines (revistas) não são zines, e isso não é simplesmente uma questão de arrancar o “maga” para chegar ao “zine”, como Larry-bob, editor do zine Holytitclamps, aponta:

 

“Não há apóstrofe em zine. Zine não é abreviação para magazine. Uma revista é um produto, uma mercadoria comercial. Um zine é um trabalho de amor, produzido sem lucro. (…) Informação é a razão pela qual um zine existe; qualquer coisa além disso está de fora.”

 

Larry-bob opõe diametralmente as palavras “zine” e “magazine” na declaração acima, usando os termos da forma que Lacan chamaria de significantes-mestres – “qualquer palavra que o sujeito tenha identificado com (ou contra) e que constituem, assim, poderosos valores positivos (ou negativos).” Na declaração de Larry-bob, “zine” é um significante mestre positivo conectado a outros significantes positivos como “informação” e “amor”, enquanto “magazine” é um significante mestre negativo conectado a outros significantes negativos como “produto” e “mercadoria”.

A visão de Larry-bob é comum entre os editores de zines. Do ponto de vista deles, revistas (magazines) são produzidas pelo dinheiro, e apenas por dinheiro; a revista supre uma demanda do mercado e não existiria se não houvesse dinheiro a ser feito com anunciantes e leitores.

Consequentemente, Larry-bob e outros editores enxergam o zine como a antítese da revista; é algo que não se corrompe pelo dinheiro ou pelas demandas dos anunciantes. Dinheiro existe apenas para sustentar o zine por mais tempo, e não o contrário. Um zine é produzido por razões puras e pessoais – a única demanda à qual ele atende vem da imaginação de seu criador, e não do mercado.

 

 As razões para essa diferenciação incisiva entre revistas e zines vêm diretamente do parente mais próximo dos zines e fonte imediata do termo “zine”: o fanzine. Como os zines, os primeiros fanzines eram produzidos por razões pessoais e não financeiras. Eles eram predominantemente produzidos por aficcionados por um determinado assunto, com frequência por literatura de fantasia e ficção científica, como documentos para celebrar a devoção e interesse de seus editores. Como Fredric Wertham aponta em seu livro “O Mundo dos Fanzines”, a palavra fanzine era originalmente uma gíria de um grupo específico, usada alternadamente com “fan-mag”, ou seja, revista de fã.

Essa significação de “revista de fã” diferenciava as publicações produzidas por fãs das revistas de banca profissionais como a Amazing Stories e a Weird Tales, que eram referidas como “prozines” – revistas profissionais. Fanzines eram largamente devotados à discussão sobre ficção científica e literatura de fantasia, e apresentavam artigos, cartoons e ficção relacionados ao assunto, tudo produzido pelos próprios fãs. Em sua introdução para “Some Zines”, Cari Goldberg-Janice escreve que os fanzines uniram fãs longínquos para escrever sobre “o assunto que eles mais amam falar – ficção científica.”

Muitos escritores de fanzines aspiravam algum dia escrever nos prozines, e muitos o fizeram, notavelmente entre eles Ray Bradbury, Robert Bloch e Robert Heinlein. Stephen Perkins cita The Comet, de 1930, como sendo o primeiro fanzine, e resume a influência destes primeiros fanzines de fantasia e ficção científica para os zines de hoje, em seu panfleto “Aproximando-se da cena de zines da década de 80″:

- Fanzines são publicações de pequena tiragem não-comerciais, não-profissionais e irregulares que tiraram vantagem das mais baratas e acessíveis técnicas de duplicação, assim como de métodos mais tradicionais de impressão como offset.

- Fanzines são publicados por e para grupos de interesses específicos e fornecem uma ligação física entre essas comunidades e, igualmente importante, dentro dessas comunidades. A inclusão dos endereços dos correspondentes e colaboradores estabelece o fanzine como um “sistema aberto”, onde a interação e o envolvimento do leitor são essenciais.

- A distribuição dos fanzines acontece principalmente dentro da comunidade que o gerou (as pequenas tiragens e um ethos não-comercial trabalham contra uma circulação mais ampla).

Descontando assinantes e colaboradores, os editores frequentemente adotam uma postura idiossincrática em relação a quem recebe cópias, existindo fanzines que não são vendidos e até fanzines que são apenas para troca.

Como Perkins detalha, os fanzines de hoje continuam possuindo muitas das qualidades dos primeiros fanzines de fantasia e ficção científica. Eles são não-comerciais, produzidos com tecnologia acessível e barata, unem uma comunidade com um interesse específico e geralmente se mantém dentro dessa comunidade, permanecendo desconhecidos para quem está de fora.

                                                                      

Do fanzine ao zine

Apesar de nascido em meio aos fãs de fantasia e ficção científica, os fanzines eventualmente se espalharam por outras áreas de interesse específico, particularmente música e quadrinhos, e o termo “fanzine” passou a denotar as publicações de fã também nessas áreas. Conforme a prática dos fanzines se espalhou para outras comunidades, as novas publicações herdaram também as qualidades dos fanzines de fantasia e ficção científica originais, eventualmente passando essas qualidades também para o que viria a ser conhecido como zine.

A evolução de fanzine para zine não foi, porém, um simples processo de um só passo. Uma vez fora do domínio exclusivo da fantasia e da ficção científica, os fanzines foram imbuídos do espírito de outros empreendimentos editoriais independentes, como a imprensa underground dos anos 1960, revistas de mail art e as Associações de Editoras Amadoras (Amateur Press Associations, APAs – que também tiveram um papel significativo na comunidade de fantasia e ficção científica). Consequentemente, os fanzines produzidos fora dos domínios da fantasia e ficção científica se tornaram muito menos publicações de fãs e muito mais uma espécie de “raça mestiça” de publicação.

O termo “zine” foi finalmente adotado porque, ainda que essa publicações idiossincráticas sejam semelhantes a fanzines, a definição tradicional não parece aplicável. O que seria John Marr, editor de Murder Can Be Fun, um fã de alguma espécie? De assassinato? De crimes? Da morte? Alguém pode certamente ter um interesse ativo nesses assuntos, mas poderia alguém ser verdadeiramente descrito como um fã desses assuntos? Provavelmente não. A evolução de fanzine para zine viu a eliminação do fã.

 

 A mudança de fanzine para zine também indeferiu a hierarquia de produtor e consumidor que está implícita no próprio termo fanzine. Não havia mais uma diferenciação silenciosa entre fanzines e prozines. É difícil imaginar Jim e Debbie Goad do Answer Me! ou Jeff Koyen do Crank fazendo seus zines como trabalhos de aprendizes, meramente aspirando o dia de suas estréias no mercado de edições comerciais, como foi o caso com tantos dos escritores dos primeiros fanzines de fantasia e ficção científica.

Até os zines especialmente devotados a um interesse específico são muito menos reverentes aos seus assuntos. O zine Maximumrocknroll pode servir como um mero catálogo dos lançamentos de punk rock do mês, mas ele serve primariamente como um fórum de discussões para todos os aspectos do “punk”.

De fato, muitas edições do MRR reservam consideráveis polegadas de colunas para discutir o que ser um “punk” significa para a sociedade, aproximando-se mais de ser um simpósio do que de um shopping center. Os leitores e os escritores desses zines enxergam a si mesmos mais como membros de uma comunidade igualitária do que como membros de uma comunidade que contém uma hierarquia de produtores e consumidores, com muitos dos consumidores aspirando chegar ao topo da hierarquia e tornarem-se produtores.

O termo fanzine, no entanto, ainda é usado entre os fãs de fantasia e ficção científica, e alguns membros dessa comunidade consideram que a atual geração de zineiros nada mais é do que um grupo de novatos que irão desaparecer em breve, devolvendo o termo “fanzine” ao seu significado original e não corrompido de denotar publicações de fãs de fantasia e ficção científica. Em seu artigo “Zines (ou, Medo e Aversão no Mundo da Imprensa Amadora)”, Peter Maranci escreve:

 

“Eu posso também levantar aqui a questão de que toda a ‘revolução’ de zines dos últimos anos é de alguma forma divertida para aqueles que estão no campo da ficção científica e role-playing. Zines com esses assuntos têm sido publicados nos últimos 50 anos ou mais. Parece que a onda de zines sobre sexo/música/góticos/etc é exatamente isso, uma onda; com o tempo, a relação entre ficção científica/RPG e a nova geração de zines será como íon”.

 

Maranci vê os zines de hoje como meras extensões dos antigos fanzines para outras áreas de interesse, e uma folheada pelas páginas de muitas das auto-produzidas publicações underground apoiariam sua declaração. Isso explica porque os termos “fanzine” e “zine” são comumente utilizados de forma alternada, apesar de eu insistir que há uma diferença entre os dois tipos de publicação. A diferença não é tão grande quanto o abismo existente entre zines e revistas, mas é considerável.

Fanzines, não apenas aqueles devotados à literatura de fantasia e ficção científica, mas a todas as áreas de interesse, ainda são, paradoxalmente, produtos criados por consumidores. Eles retiram suas mais significativas inspirações nos produtos dos outros. A linha entre fanzine e zine fica às vezes embaçada porque eles têm uma relação muito próxima, e muitos periódicos auto-publicados como a Maximumrocknroll são misturas de ambos. A notável diferença entre os dois tipos de publicação é que os fanzines repousam sobre uma hierarquia de produtor e consumidor que os zines transcendem. Os melhores zines, seja lá quais sejam seus assuntos, não habitam um mundo pronto, eles criam seus próprios mundos.